SIGILO DAS COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS, TELEGRÁFICAS E DE DADOS
Gravações telefônicas: ilicitude e inadmissibilidade |
Luiz Flávio Gomes
RESUMO
Trata de um assunto bastante controvertido no ordenamento jurídico brasileiro – o das gravações telefônicas clandestinas –, por não existir no Brasil lei que as discipline. Discute se estas se constituiriam ou não meio de prova tanto para efeitos penais como para efeitos civis.
Faz uma distinção entre interceptação telefônica e gravação telefônica, cujos conceitos se confundem muito, não possuindo, esta última, disciplina jurídica própria, constituindo-se, assim, numa lacuna do Direito positivo brasileiro.
Entende se tratarem as gravações clandestinas de provas ilícitas e só admissíveis no caso de favorecer o réu. Cita, ainda, jurisprudência a respeito do assunto, fazendo estudo comparativo entre as mesmas a fim de justificar seu posicionamento.
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ABSTRACT
It discusses a rather controvertial issue in the Brazilian legal ordination – the clandestine telephone recordings –, due to the non-existence in Brazil of a law which regulate them. It is discussed if they could constitute or not in means of evidence as much for penal effects as for civil effects.
It makes a distinction between telephone interception and telephone recording, whose concepts are very mixed up, the last one not having its own legal regulation. They constitute, this way, in a gap of the positive Brazilian Law.
It is understood that the clandestine recordings are illicit evidences and they are only admitted in case of aiding the defendant. Still it mentions jurisprudence in regard the issue, making a comparative study among them in order to justify their position.
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A expressão genérica "gravações clandestinas", aliás, abrange tanto a telefônica (quando se grava uma comunicação telefônica própria) quanto a ambiental (quando se grava uma conversação entre pessoas presentes, de forma sub-reptícia, isto é, sem o conhecimento do interlocutor). Ambas não possuem disciplina jurídica própria entre nós. Por constituírem formas de restrição ao art. 5º, inc. X, da Constituição Federal, que assegura o direito à privacidade e intimidade (observando-se que a gravação telefônica configura também restrição ao inc. XII, que menciona genericamente "comunicações telefônicas"), é evidente que, nesta altura, já deveriam estar devidamente regradas.
Não é "crime" gravar clandestinamente uma comunicação telefônica (leia-se: uma conversa própria). O ato de gravar, tão-somente gravar, não configura nenhum ilícito penal. Mas sem sombra de dúvida já configura uma invasão à intimidade ou privacidade alheia, assim como ao sigilo das comunicações telefônicas. Por isso, em regra, não se pode divulgar o conteúdo dessa gravação. A isso dá-se o nome de "direito à reserva" (reservatezza), que se distingue do "direito ao segredo" (segretezza): neste último o que se objetiva é evitar que um terceiro capte uma comunicação alheia; por aquele (direito à reserva) o que se pretende é a não-divulgação daquilo que foi clandestinamente gravado3.
A divulgação indevida da gravação, aliás, configura o delito previsto no art. 153 do Código Penal. Com efeito, quem divulga, sem justa causa, o conteúdo de uma gravação clandestina, está praticando o citado ilícito penal. Mas se existe justa causa (divulgação para salvaguardar um direito fundamental relevante, como a vida, a integridade física etc. do interlocutor ou de terceira pessoa, como, por exemplo, na hipótese de uma exigência econômica ilícita caracterizadora de uma extorsão), não há crime.
A principal questão que gira em torno do assunto, hoje, entretanto, é a seguinte: tendo em vista o lacunoso ordenamento jurídico brasileiro, poderiam ser utilizadas como prova essas gravações clandestinas? A resposta, segundo nosso ponto de vista, só pode ser uma:contra reum é impossível; pro reo, sim, seria admissível.
Como provas incriminatórias (apresentadas no processo penal com a pretensão de sua reconduzibilidade ao afastamento do princípio da presunção de inocência), precisamente porque nosso ius positum padece, no ponto, de omissão injustificável, não podem ser aceitas de modo algum4. Não servem para incriminar ou provar a culpabilidade de ninguém, isto é, não podem ser utilizadas contra o acusado (contra reum), muito menos invocadas como fundamento de qualquer sentença condenatória legítima5. A única ressalva doutrinariamente sugerida consiste na utilização dessa prova ilícita em benefício do acusado, para provar sua inocência (isso se faz em razão do princípio da proporcionalidade6).
O princípio constitucional em jogo no caso de uma gravação clandestina não é o da ampla defesa, senão o da legalidade (due process of law). Cuida-se de gravação feita sem lei específica, é dizer, sem base legal. E sabe-se que toda e qualquer restrição a direito fundamental exige lei. Trata-se de princípio básico do Estado de Direito, tal como leciona Manoel Gonçalves Ferreira Filho7, verbis: Realmente, o princípio da legalidade condiciona a uma forma – a forma da lei – o estabelecimento de restrições aos direitos fundamentais.
A gravação clandestina, como se vê, não pode valer como prova, não porque o comunicador não possa gravar sua comunicação, senão porque não existe lei disciplinando como deve dar-se a gravação, quando é cabível, quais crimes, quais pressupostos, quanto tempo, em quais processos poderia ser utilizada etc.
Na jurisprudência brasileira encontra-se julgado admitindo a gravação clandestina como prova8, sob o argumento de que a Constituição veda a interferência de terceiro na comunicação... Mas a conversa regular entre duas pessoas que se aceitam como comunicador e receptor, em livre expressão de pensamento, admite a gravação por uma das partes... o interlocutor poderá gravá-la. Poderá utilizá-la para prova em processo, uma vez que houve expressa vontade de manifestar o pensamento àquele.
Em recentíssimo julgamento (11/3/98, habeas-corpus 75.338-RJ, Rel. Min. Nélson Jobim, v. Informativo STF n.102), o Plenário do Colendo Supremo Tribunal Federal enfrentou outra vez a questão e assinalou: Considera-se prova lícita a gravação telefônica feita por um dos interlocutores da conversa, sem o conhecimento do outro. Afastou-se o argumento de afronta ao art. 5º, XII, da CF (...), uma vez que esta garantia constitucional refere-se à interceptação de conversa telefônica feita por terceiros, o que não ocorre na hipótese. Com esse entendimento, o Tribunal, por maioria, indeferiu o pedido de habeas-corpus em que se pretendia o trancamento da ação penal contra magistrado denunciado por crime de exploração de prestígio (...), com base em conversa telefônica gravada em secretária eletrônica pela própria pessoa objeto da proposta. Vencidos os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, que deferiam a ordem.
Com a devida vênia, a Constituição não apenas veda a interferência de um terceiro nas comunicações, senão que protege de modo inequívoco todo tipo de comunicação telefônica (inc. XII) (Ubi lex non distinguit, nec interpres distinguere debet). De qualquer maneira, ainda que se admitisse que o inc. XII não representa uma garantia de sigilo em relação a todas as comunicações telefônicas (frente a interceptações e a gravações clandestinas), mesmo assim, restaria considerar a garantia do inc. X (respeito à intimidade, privacidade). Se a gravação telefônica não constitui, como foi afirmado, uma violação ao inc. XII, na atualidade, por falta de lei regulamentadora, constitui total afronta ao princípio do devido processo legal (art. 5º, inc. LIV).
A regra, consoante nosso ordenamento constitucional, é o sigilo, é a inviolabilidade da intimidade ou das comunicações. Mas cabe considerar que não existem direitos (ou garantias) absolutos. Logo, não há dúvida de que pode haver lei restritiva sobre a matéria. Mesmo porque, se de um lado está em jogo a liberdade, o sigilo e a intimidade, de outro, não se pode ignorar a imperiosidade da prevenção e repressão ao delito, que também é um valor protegido constitucionalmente. Nesse caso a lei daria os parâmetros da admissibilidade da gravação, assim como os requisitos da sua obtenção. A prova seria lícita e poderia ser utilizada no processo. Mas tudo isso é de lege ferenda. Pelo ordenamento jurídico hoje vigente configura prova ilícita e isso pode ser afirmado por duas razões:
a) a ilicitude da prova refere-se particularmente sobre a forma de sua geração e nessa hipótese há ilicitude tanto quando não são cumpridos os dispositivos previstos para a produção de uma delas como quando adotam-se meios não autorizados pela lei, o que de certa forma é a mesma coisa9;
b) o art. 383 do CPC, que autoriza provas mecânicas, fotográficas, fonográficas etc., não serve de respaldo para as atuais gravações ilícitas10 porque não estabelece nem a forma nem as hipóteses em que a gravação seria permitida no âmbito criminal (inc. XII).
A rejeição da tese de que o art. 383 do CPC não é suficiente para "legalizar" a gravação telefônica assenta-se no seguinte:
a) A "reserva de lei", expressão contida no art. 5º, inc. XII, da CF (mesmo que não houvesse exigência expressa, aliás, tal como se dá com o inc. X, a necessidade de "lei" é unanimemente reconhecida pela mais abalizada e atualizada doutrina, sempre que se pretenda "restringir direitos fundamentais")11, não se contenta com uma lei genérica, sem que indiquem as hipóteses claras de possibilidade da gravação;
b) Quando se discutia a inexistência de lei para as interceptações telefônicas no Brasil, o STF (No habeas-corpus 69.912-RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence) proclamou que não bastava o disposto no art. 57 do Código Brasileiro de Telecomunicações, por não atender "à reserva de lei"12; com mais forte razão não se pode admitir que o art. 383 do CPC cumpra esse papel em relação às gravações telefônicas;
c) Por último, cabe invocar a experiência estrangeira, particularmente a européia, onde, aliás, não se trata de tema novo: o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em pelo menos duas ocasiões (casos Kruslin e Huwig, 24/04/90), ao censurar duramente o art. 81 do CPP francês, proclamou que não basta uma norma sobre a matéria, pois se faz necessário que haja uma disciplina jurídica clara e unívoca13. Em ocasiões precedentes, o mesmo Tribunal já havia afirmado que o princípio de proporcionalidade reclama que as medidas restritivas dos direitos tutelados pelo Convênio de Roma se encontrem previstas em lei e sejam necessárias em uma sociedade democrática para alcançar certos fins legítimos14.
Se de um lado é certo que nenhuma restrição a direito fundamental pode violar o princípio da proporcionalidade, de outro, tampouco se pode negar que o pressuposto formal desse princípio reside no princípio da legalidade, mesmo porque nulla coactio sine lege. A lei processual deve tipificar tanto as condições de aplicação, como o conteúdo das intromissões dos poderes públicos no âmbito dos direitos fundamentais dos cidadãos, observando-se ademais que essa mesma lei deve atender às três clássicas exigências da lex scripta, stricta epraevia.
A razão central da impreteribilidade de diploma legal que cuide das restrições dos direitos fundamentais outra não é senão a de assegurar ao cidadão a previsibilidade das conseqüências derivadas da sua conduta. Toda intervenção na liberdade tem de ser razoavelmente previsível, além de clara e precisa16.
A posição mais correta e garantista, a propósito, longe de ser a mais recente do Egrégio STF, foi a adotada pela mesma Corte na Ação Penal 307-DF (Caso Collor de Mello)17, Rel. Min. Ilmar Galvão: na ocasião, em decisão plenária, firmou-se a doutrina da inadmissibilidade, como prova, de laudos de degravação de conversa telefônica e de registros contidos na memória de microcomputador... no primeiro caso por se tratar de gravação realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, havendo a degravação sido feita com inobservância do princípio do contraditório e utilizada com violação à privacidade alheia.
Como salientou, na ocasião, o Ministro Celso de Mello18:
A gravação de conversação com terceiros, feita através de fita magnética, sem o conhecimento de um dos sujeitos da relação dialógica, não pode ser contra este utilizada pelo Estado em juízo, uma vez que esse procedimento, precisamente por realizar-se de modo sub-reptício, envolve quebra evidente de privacidade, sendo, em conseqüência, nula a eficácia jurídica da prova coligida por esse meio. O fato de um dos interlocutores desconhecer a circunstância de que a conversação que mantém com outrem está sendoobjeto de gravação atua, em juízo, como causa obstativa desse meio de prova. O reconhecimento constitucional do direito à privacidade (CF, art. 5º, inc. X) desautoriza o valor probante do conteúdo de fita magnética que registra, de forma clandestina, o diálogo mantido com alguém que venha a sofrer a persecução penal do Estado. A gravação de diálogos privados, quando executada com total desconhecimento de um dos seus partícipes, apresenta-se eivada de absoluta desvalia, especialmente quando o órgão da acusação penal postula, com base nela, a prolação de um decreto condenatório.
Assim sendo, bem concluiu Alexandre de Moraes19:
As provas obtidas por meio de interceptações telefônicas [antes da lei] ou gravações clandestinas são inadmissíveis no processo, pois obtidas por meios ilícitos, sendo, conforme decidiu o Plenário do Supremo Tribunal Federal, indubitável que a prova ilícita, entre nós, não se reveste da necessária idoneidade jurídica como meio de formação do convencimento do julgador, razão pela qual deve ser desprezada, ainda que em prejuízo da apuração da verdade, no prol do ideal maior de um processo justo, condizente com o respeito devido a direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, valor que se sobreleva, em muito, ao que é representado pelo interesse que tem a sociedade numa eficaz repressão aos delitos.
Seja por força da exigência constitucional contida na parte final do inc. XII do art. 5º da CF, seja porque toda restrição a direito fundamental somente pode ser concretizada mediante "lei" clara e inequívoca (TEDH), conclui-se que as "gravações telefônicas" hoje, do ponto de vista jurídico, acham-se na mesma situação das interceptações telefônicas antes do advento da Lei n. 9.296/96. Daí a pertinência de toda doutrina construída exuberantemente pelo STF a propósito do tema, enfocado particularmente no famoso habeas-corpus 69.912-RS (Rel. Min. Sepúlveda Pertence; v. RTJ 115-508 e ss.).
O Ministro Celso de Mello, em seu magistral voto (RTJ 155-512), depois de salientar que a Constituição do Brasil, ao repelir a doutrina do male captum, bene retentem, sancionou com a inadmissibilidade de sua válida utilização as provas inquinadas de ilegitimidade ou de ilicitude, agregou:
A cláusula constitucional do due process of law – que se destina a garantir a pessoa do acusado contra ações eventualmente abusivas do Poder Público – tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas ou ilegítimas, uma de suas projeções concretizadoras mais expressivas, na medida em que o réu tem o impostergável direito de não ser denunciado, de não ser julgado e de não ser condenado com base em elementos instrutórios obtidos ou produzidos com desrespeito aos limites impostos pelo ordenamento jurídico ao poder persecutório e ao poder investigatório do Estado.
De todo o exposto infere-se que a prova ilícita não serve para quebrar o princípio da presunção de inocência, que só se afasta, aliás, consoante o disposto no art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (n. 2), quando a acusação comprova "legalmente" a culpabilidade do acusado.
O que cabe realçar nas atuais gravações telefônicas, em suma, é sua clandestinidade, é sua surpresa, porque não se trata de meio probatório devidamente descrito no ordenamento jurídico. Uma coisa é expressar o pensamento numa comunicação telefônica sabendo que eventual gravação não pode ser juridicamente realizada, outra bem distinta ocorre quando se sabe que tal gravação pode ser feita e utilizada como prova. Nas gravações atuais, por isso mesmo, não só existe uma quebra antijurídica do direito à reserva, senão uma grave ofensa à intimidade e ao princípio da reserva legal.
O Excelso Pretório, ao admitir a gravação telefônica como prova lícita (habeas-corpus 75.338-RJ, Rel. Min. Nélson Jobim), por nove votos a dois (vencidos Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello), para, além de destoar da sua própria jurisprudência garantista (HC 69.912-RS, RTJ 155-508 e ss.), das decisões das Cortes estrangeiras (TEDH, por exemplo), assim como dos Documentos Internacionais vigentes no nosso país e entorno cultural (DUDH, art. XII, PIDCP, art. 17, CADH, art. 11), acaba de protagonizar um dos paradoxos mais iliberais deste final de século e que consiste no seguinte:
Quando, por omissão do Poder Público, falta uma lei para assegurar o exercício de um direito do cidadão, ingressa-se com mandado de injunção e a Suprema Corte não garante esse exercício, remetendo o assunto para o Congresso Nacional; quando falta uma lei que discipline os limites de intervenção do Poder Público no âmbito das liberdades do cidadão, tal como se dá no caso da gravação telefônica, a mesma Corte apressa-se em proclamar que, mesmo sem lei, a intromissão é permitida.
Em alguns momentos, mesmo depois de quase oito séculos, parece que continua letra morta o art. 39 da Great Charter de João Sem-Terra (1215), que já previa a impossibilidade de se afetar a vida, a liberdade e o patrimônio individual, a não ser by law of the land. Afigura-se de pouca valia, em certos momentos, toda a construção histórica do due process of law previsto nas Emendas V e XIV da Constituição Americana. Nem sequer a doutrina dos Iluministas parece ter produzido qualquer resultado. Beccaria, que lutou tanto pela legalidade penal, dizia: para que toda pena não seja violência de um ou de muitos contra um particular cidadão, deve essencialmente ser (...) ditada pelas leis20.
Se o caminho percorrido pelo STF para justificar a gravação telefônica no atual contexto histórico e jurídico revela-se, data venia, equivocado, não menos tortuoso foi o adotado pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça que, no RHC 7216-SP, Quinta Turma, DJU de 25/5/98, p. 125, afirmou:
A gravação de conversa por um dos interlocutores não é interceptação telefônica, sendo lícita como prova no processo penal. Pelo princípio da proporcionalidade, as normas constitucionais se articulam num sistema, cuja harmonia impõe que, em certa medida, tolere-se o detrimento a alguns direitos por ela conferidos, no caso, o direito à intimidade.
O argumento é perfeito para o legislador, que se deve guiar efetivamente pelo princípio da proporcionalidade para restringir direitos fundamentais, inclusive o da intimidade, jamais para o magistrado, visto que o princípio da proporcionalidade, desde sua construção inicial pelo Tribunal Constitucional alemão, ao se instrumentar mediante a realização do contrapeso dos interesses em conflito em casos concretos, não se revela apto para um contrapeso "supralegal", desligado das garantias estabelecidas na lei, que levaria à possibilidade de um juiz, já com base no princípio e mesmo sem lei, em casos excepcionais e quando concorrem importantes interesses do Estado, adotar medidas não contempladas com clareza no ordenamento jurídico.
Como enfatiza, a respeito, Nicolas Gonzales-Cuellar Serrano21, nisso se abre uma brecha no princípio da legalidade e se assinala ao princípio da proporcionalidade uma função pervertida que, longe de favorecer os direitos fundamentais do cidadão, retira do princípio sua finalidade de limite das restrições, permitindo-se, com isso, ao Estado, encobrir com argumentos pseudojurídicos atuações arbitrárias.
Que os direitos fundamentais são relativos não se questiona. Que o legislador pode limitar o direito à intimidade é algo indiscutível. Pretender, no entanto, diante de sua injustificada omissão, supri-la pela via da "utilização do sistema judicial", em detrimento do "sistema legal", é pura e simplesmente decretar o fim do Estado de Direito, substituindo-o pelo "ativismo judicial". No dia em que o "critério prudente do juiz", com exclusividade, puder servir de base a uma "visão ampliada de admissão de provas", assentada na ordem objetiva de valores, como meio de resguardar interesses maiores, em detrimento dos direitos individuais, porque a busca da verdade material é o fim ideal a ser realizado pelo Estado-juiz, por meio da prestação jurisdicional, acaba-se o Estado de Direito e sepultam oito séculos de evolução civilizada do princípio do due process of law.
Impõe-se, diante de tudo que foi exposto, divergir dos recentes posicionamentos das Cortes Superiores brasileiras, bem como do respeitável entendimento do Min. José Dantas22, que certa feita proclamou: Habeas-corpus. Acerto de sua denegação, na origem, posto que não há tachar-se de ilícita a prova resultante da gravação telefônica feita por um dos interlocutores, se à mesma se juntam outros elementos de prova.
A licitude ou ilicitude da prova não depende da existência ou inexistência de outras provas. O relevante é considerar o momento da sua obtenção: considerando que não existe lei no Brasil disciplinando a gravação telefônica, a conclusão inevitável é de que se trata de prova ilícita. Se existem outras provas, lícitas, o juiz pode considerá-las em seu convencimento. De qualquer modo, no entanto, deve refutar a prova ilícita, porque "inadmissível".
As gravações clandestinas (sub-reptícias, fraudulentas) de declarações do suspeito ou indiciado ou acusado, feitas por autoridades, por seu turno, tampouco valem, obviamente, como prova. Até porque violam, também, nesse caso, o princípio do nemo tenetur se detegere. No habeas-corpus 73513-423 admitiu-se a gravação de entrevista de indiciados com autoridade policial como prova válida. Não esclarece a ementa se essa gravação foi ou não clandestina. Caso tenha sido, é evidente que se deu validade a uma prova absolutamente ilícita, em flagrante violação à Constituição Federal.
Se no âmbito penal parece haver consenso no sentido de que as gravações clandestinas, principalmente telefônicas, não valem como prova incriminatória24, o mesmo não pode ser dito quanto ao âmbito do processo civil. Há muita controvérsia a respeito, como bem realça Nelson Nery Júnior25. Um dos primeiros, senão o primeiro acórdão do STF foi no sentido da prova ilícita (RTJ 84/609). Cuidando-se de gravação telefônica de conversa própria, no entanto, vários julgados a admitem como prova lícita, para defesa de um direito do interlocutor que gravou a conversa26. Essa aliás é a doutrina de Régis de Oliveira27, que acentua ser limite do "moralmente lícito" a interferência de um terceiro. Há quem sustente a aplicação analógica do art. 233 do CPP, que se refere à correspondência.
A admissibilidade da gravação clandestina é deveras controvertida, senão incorreta, porque não existe lei no Brasil que discipline a gravação telefônica ou ambiental. E sem lei nenhum direito fundamental pode ser restringido ou limitado. A aplicação analógica não é válida para a restrição de direito fundamental. A legalidade é requisito número um para a regulamentação de qualquer direito. Não havendo lei restritiva do direito à intimidade previsto no inc. X, do art. 5º, prevalece seu sentido mais amplo, assegurador dessa liberdade. Qualquer prova obtida hoje por meio de gravação clandestina, em síntese, viola a CF (inc. LIV). É prova ilícita e, portanto, consoante nosso ponto de vista, inadmissível no processo (seja penal, seja civil).
NOTAS
1 GOMES, Luiz Flávio, CERVINI, Raúl. Interceptação telefônica, São Paulo:Revista dos Tribunais, 1997. p. 95 e ss.
2 GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antônio Scarance, GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 3. ed . São Paulo:Malheiros, 1993. p. 153.
AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas e gravações clandestinas. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1995. p. 100 e ss.
3 AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas. op. cit., p. 101.
4 No entanto, em sentido contrário, e sem prejuízo do desenvolvimento recente do tema na nossa jurisprudência, o Recurso em Mandado de Segurança n. 7.010, Rel. Min. José Dantas, que reputou como válida a gravação telefônica feita por um dos interlocutores.
5 Nesse sentido HENTZ, Luiz A. Soares. Gravação clandestina: prova no processo penal. Boletim IBCCrim, n. 30, p. 4.
6 AVOLIO, Luiz F. Torquato. Provas ilícitas. op. cit., p. 102 e ss.; ainda: GRINOVER, Ada Pellegrini, FERNANDES, Antônio Scarance e GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades, op. cit., p. 154 e ss.
7 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo:Saraiva, 1995. p. 103.
8 Por exemplo, JTJ, LEX, v. 180, p. 278/279, Rel. Des. Denser de Sá.
9 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. 2 ed., São Paulo:Saraiva, 1989. p. 274.
10 Em sentido contrário, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 82, n. 692, jun. 1993. p. 370 e ss.
11 STUMM, Raquel Denize. Princípio da proporcionalidade no direito constitucional brasileiro. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 1995. p. 67; BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília:Brasília Jurídica, 1996. p. 144.
12 Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 2, n. 7, jul./set. 1994. p. 178.
13 FILIPPI, Leonardo. L´intercettacione di comunicazioni. Milano:Giuffrè, 1997. p. 47-48.
14 GONZALES-CUELLAR SERRANO, Nicolas. Proporcionalidad y derechos fundamentales en el processo penal. Madri:Colex, 1990. p. 69.
15 Assim, GONZALES-CUELLAR SERRANO, Nicolas. Proporcionalidad y derechos fundamentales. op. cit., p. 77.
16 FILLIPI, Leonardo. L‘intercettazione di comunicazioni. op. cit., p. 44.
17 Eram acusados Fernando Collor, Paulo César Farias e outros. Tratava-se de uma gravação que envolvia o Dep. Sebastião Curió e Paulo César Farias.
18 MELLO apud MORAES, Alexandre de. Boletim IBCCrim n. 44, p. 6.
19 MORAES, Alexandre de. op. cit. p. 6.
20 BECCARIA. De los delitos y de las penas. trad. Juan de las Casas. 3. ed. Alianza Editorial, 1982. p. 112.
21 GONZALES-CUELLAR SERRANO, Nicolas. Proporcionalidad y derechos fundamentales, op. cit., p. 71.
22 HC 4.654-RS, STJ, Quinta Turma, Rel. Min. José Dantas, DJU de 16/12/96, p. 50.891.
23 Do STF, Rel. Min. Moreira Alves, v. DJU de 04/10/96, p. 37.101.
24 Essa doutrina foi sustentada no STF no HC 63.834-1-SP (Rel. Min. Aldir Passarinho) JSTF, LEX, v. 106, p. 286 e ss.
25 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 3. ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1996. p. 153 e ss.
26 V. RJTJESP, LEX, v. 137, p. 360 e ss. (Rel. Euclides de Oliveira); v. ainda: JSTJ e TRF, LEX, v. 60, p. 418 e ss (Rel. Fernando Gonçalves); RT 699, p. 71 e ss (Rel. Fonseca Tavares); JTACSP-RT- v. 108, p. 273 (Rel. Batista Lopes); JTACSP-RT-, v. 111, p. 149 e ss. (Rel. Régis de Oliveira).
27 OLIVEIRA, Régis Fernandes. A prova colhida em fita magnética. Revista dos Tribunais, v. 78, n. 643, p. 25-28, maio 1989. p.28.http://daleth.cjf.jus.br/revista/numero5/artigo9.htm
Luiz Flávio Gomes é Advogado e co-autor do livro Interceptação Telefônica.
A gravação de conversa feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro para fins de comprovação de direito não é ilícita e pode ser usada como prova em ação judicial. Foi o que fez um técnico de telefonia ao se sentir pressionado a pedir demissão - ele gravou conversas com os donos e a contadora da empresa em que trabalhava com um aparelho de MP3. Ao examinar o caso, a Justiça do Trabalho considerou que a gravação feita pelo trabalhador é prova lícita.
Na ação que apresentou na 11ª Vara do Trabalho de Recife, em Pernambuco, o técnico contou que foi contratado pela Luleo Comércio para fazer instalação e manutenção de rede de acesso de telecomunicações para a Telemar Norte Leste. Aproximadamente três meses após a contratação, sofreu acidente de trabalho e passou a receber auxílio previdenciário.
Quando retornou à empresa, como não havia mais o contrato com a Telemar, o empregado foi designado para ocupar a função de telefonista. Gravações em um cd ("compact disc") juntado ao processo confirmaram que o trabalhador sofreu pressões para pedir demissão antes do término do período de estabilidade provisória acidentária de um ano a que tinha direito.
Segundo a sentença, a coação foi sutil, com insinuações de que o empregado ficaria fora do mercado de trabalho e poderia não mais prestar serviços por meio de outras empresas terceirizadas à Telemar. Disseram também que não "pegava bem" ele ter trabalhado apenas três meses (entre a admissão e o acidente) e a Luleo ter que mantê-lo em seus quadros por um ano em razão da estabilidade acidentária.
Assim, a juíza entendeu que a dispensa do empregado tinha sido imotivada e concedeu, em parte, os pedidos formulados, tais como o pagamento de diferenças salariais, aviso prévio e FGTS com multa de 40%. Declarou, ainda, a responsabilidade subsidiária da Telemar pelos créditos trabalhistas devidos ao técnico em caso de inadimplência da Luleo, pois, na condição de tomadora dos serviços, beneficiou-se da força de trabalho do empregado (incidência da Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho).
O Tribunal do Trabalho da 6ª Região (PE), por sua vez, manteve o entendimento da primeira instância quanto à licitude da gravação feita pelo empregado e negou provimento ao recurso ordinário da Telemar. Para o TRT, os diálogos foram realizados no ambiente de trabalho, sem violação à intimidade e privacidade das pessoas envolvidas, e em conformidade com o artigo 225 do Código Civil de 2002, que admite gravação como meio de prova.
No recurso de revista que apresentou ao TST, a Telemar defendeu a tese de que a gravação de conversa feita sem o conhecimento dos interlocutores era ilícita e não servia como prova. Alegou ofensa a direitos constitucionais, como o respeito à vida privada das pessoas, ao livre exercício do trabalho e à vedação da utilização de provas no processo obtidas por meio ilícito (artigo 5º , X , XIII e LVI , da Constituição Federal ).
Entretanto, de acordo com o relator e presidente da Terceira Turma do Tribunal, ministro Horácio Senna Pires, as alegações da empresa em relação à clandestinidade da gravação não torna a prova ilícita. Isso porque os diálogos também pertencem ao trabalhador que gravou a conversa com a intenção de comprovar um direito.
O relator explicou que o Supremo Tribunal Federal já julgou diversos casos no sentido de que a gravação de conversa nessas condições não se enquadra na vedação do uso de provas ilícitas de que trata o artigo 5º , LVI , da Constituição . O ministro Horácio destacou ainda o julgamento de um processo em que o STF reconheceu a repercussão geral da matéria.
Desse modo, como o relator concluiu que a gravação é prova lícita no processo e inexistiram as violações constitucionais mencionadas pela empresa, a Terceira Turma, por unanimidade de votos, rejeitou (não conheceu) o recurso de revista da Telemar nesse ponto. (RR-162600-35.2006.5.06.0011)
(Lilian Fonseca)
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Nem sempre a doutrina coincide com as decisões judiciais.
"A gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores pode ser usada como prova, mesmo que tenha sido feita sem qualquer autorização ou sem o conhecimento de quem estava na outra ponta da linha. O entendimento foi reafirmado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal.O relator do processo, ministro Cezar Peluso, sustentou que o uso da conversa gravada é perfeitamente legal neste caso, sobretudo se ela é usada para defesa própria em investigação criminal.
O ministro ressaltou que em conversas protegidas por sigilo constitucional — como entre advogados e clientes ou padres e fiéis — o entendimento é diferente.
Mas se a conversa gravada não se encaixa nestes casos, “a gravação é clandestina, mas não ilícita, nem ilícito é seu uso, em particular como meio de prova”. A decisão da 2ª Turma do Supremo foi unânime."
Assim, como fica a doutrina da matéria de hoje?
Fraco